sexta-feira, 4 de julho de 2014

Quindim, O Campeão

A vida de seu Apolinásio era tranqüila, como só a podem ter os moradores da zona rural. Em seu pequeno sítio, além da plantação de mandioca e de umas poucas hortaliças que eram à base de seu sustento, havia um pequeno galinheiro. Não era muito, mas, bastava a sua família. Ele, viúvo já há alguns anos, um filho de nove a dez anos e uma agregada, senhora de seus cinqüenta anos, que o ajudava a criar o filho e a cuidar da casa de três ou quatro peças. O banheiro ficava do lado de fora.
            Um dia, quando uma nova ninhada corria alegre pelo terreiro, Gu, como era conhecido e chamado o pequeno Gumercindo, afeiçoara-se a um pintinho e começou a tratá-lo com especial cuidado. Nascia assim, Quindim, franzino a princípio, porém, cuidado por Gu, crescia a olhos vistos.
            Certa vez, Apolinásio, alimentando sua criação, notara que o frangote tinha ares de superioridade e não perdia nenhuma disputa; até mesmo Cocó, galo chefe e senhor de seus patrícios, não ousava duelar com Quindim.
            Na roda de amigos, não se falava em outra coisa. Quindim era todo o cuidado daqueles que se encontravam na venda de Gervásio para um longo trago de pinga após uma semana dura de trabalho. É ali, naquele trololó solto e mole, que Gervásio, também criador de galinhas, propõe uma disputa: uma garrafa de pinga. Lutariam Quindim e Rércules, galo de boas proporções e tido como bom de briga. Apolinásio entristeceu, o galo era do filho. Gervásio, então, propôs o consolo definitivo. Se Quindim ganhasse, levaria a pinga e uma bola, aquelas de borracha fraca, para Gu; se perdesse, só pagaria a pinga.
            Na outra semana, reunidos os astros da tarde de gala e mais os assíduos espectadores, deu-se o grande embate. Quindim nem deu chance para Rércules, dois ou três golpes e Rércules ficou estirado no terreiro. Não por muito tempo. Gervásio o amparou com solenidade e o entregou a cozinheira. Rei deposto, rei morto, disse ele sem entender o sentido de tais palavras.
            Gu, sem saber do ocorrido, ficou felicíssimo com a bola que tratou de furar no primeiro chute que deu. Errou o alvo, acertou a cerca de arame farpado. O pai o consolou prometendo outra bola no final de semana e esta deveria ser de couro. Quindim tinha nova luta, duas garrafas de pinga. Mas, Apolinásio bateria o pé e exigiria a bola para o real proprietário do galo.
            Nova vitória de Quindim. Colocou a nocaute o galo adversário no quarto ou quinto golpe. Sua fama crescia e, em pouco tempo, Quindim, o campeão, como agora era chamado, tornou-se a sensação da venda de Gervásio. Todos os sitiantes da região lá corriam para desafiar ou assistir a mais uma vitória implacável de Quindim. Gervásio, cada vez mais feliz com seu protegido, era agora o organizador de todas as lutas, vendia como nunca. Todos ganhavam. Quindim, Gu, Apolinásio e ele, principalmente, e isso é que interessava. Tempos depois, um rico fazendeiro da região, Dr. Fernando Gouveia de Castro e Silva, surge com seu galo Rá. Disseram que era o nome de um antigo deus do Egito, mas, ninguém sabia quem era esse tal de Egito. Apolinásio ficara apreensivo, todos que lá iam, lá iam em suas carroças puxadas por burros ou a pé, como era mais comum. E chega esse Senhor Doutor Fernando Gouveia de Castro e Silva em sua caminhonete importada. Ninguém da venda sabia se era importada, mas, como o último carro que viram por ali era um corcel 74 que, às vezes, abastecia a venda, ninguém duvidou que aquele monstro de quatro rodas só poderia vir do estrangeiro.
-          E se ele quiser apostar alto, comentava Apolinásio a Gervásio, seu agora, patrocinador.
Suas apostas se limitavam as pingas, um pouco de farinha, um brinquedo ou outro para Gu; algo além disso, não teria como apostar.
            Gervásio, conciliador, dizia para que ele não se preocupasse, cobriria a aposta e, se por uma infelicidade do destino, Quindim, ganhador de tantas lutas, viesse a perder, eles, amigos, companheiros, compadres, fariam o negócio em pequenas prestações a perder de vista e os olhos da cara.
            Apolinásio confiava muito em Gervásio e por isso foram ver o que pretendia o Excelentíssimo Senhor Doutor Fernando Gouveia de Castro e Silva.
            - Mil Reais?! Exclamava Apolinásio sem nem saber quanto isso significava.
            Os amigos atenderam prontamente. Eu dou 10, eu dou 15, depois, Quindim não perde, se perder a gente acerta quando puder.
            Gervásio empenhou palavra e mercadorias. Gouveia, Gouveinha, como já era tratado pelos invencíveis fãs de Quindim, não se opôs, mil reais em dinheiro contra mercadorias e alguns contos de reis.
            No primeiro round, os lutadores apenas se analisaram, ninguém nada fez. No segundo, poucos golpes, sem grandes comoções. A luta se estendeu além de seu habitual. Gouveia ou Gouveinha torcia o nariz a temer o pior, mas, Rá mantinha-se de pé e a distância. Os patrocinadores de Quindim tinham um sorriso amarelo de satisfação. Expectativa, suores, murmúrios e sobrevêm o embate final. Após graves e ferozes bicadas, asas batendo, esporas ferindo, caem os dois galos por terra. Ninguém diz uma palavra. Todos estão boquiabertos. Olhares atentos. Ninguém pisca apesar do suor que escorre pelos olhos de cada um dos... Uma asa balança. É Quindim. Sorrisos largos de satisfação. Quindim estanca. Rá, tonto como um bêbado no final da tarde, cambaleando, põe-se de pé. Como um cachorro fiel a seu dono, vacila, caminha, cai, mas chega próximo ao dono, aos pés do dono onde descansa. Rá é o vencedor.
            Apolinásio, decretada a derrota de Quindim, o recolhe com uma grande tristeza no olhar. Quindim está vivo. Muito machucado. Vivo. Ferido em seu orgulho de galo brigão. Vivo.
            Apolinásio assina os papéis de compromisso de dívida com os amigos, amarrota uma amarga caderneta com Gervásio, onde inclui um tratorzinho de plástico barato para Gu e vai embora triste, sozinho com seu galo no colo.
            Em casa, depois de analisar os ferimentos de Quindim – Rei deposto, rei morto! – entrega a Felizbertina o prato principal do jantar: Arroz, Quindim, ovos e mandioca.
            Gu brinca com o tratorzinho de plástico no terreiro enquanto espera a hora de jantar.


Por que os Homens Mentem?

Há três motivos básicos para que os homens mintam: vergonha, medo e calhordice.
            Mas, não se apavorem. Há um culpado, ou melhor, culpada. Toda vez que um homem mente, deveria invocar a figura feminina mais ilustre de sua vida: sua mãe. Sim, não tenham dúvidas, as mães são as grandes e verdadeiras culpadas pelas mentiras dos homens. Então, como as mulheres podem ficar indignadas quando nós, meros fantoches, somos compelidos, obrigados mesmo, a mentir. Elas, pelo menos em teoria, são, foram ou serão mães.
            Quando bebês, tudo o que fazemos é bonitinho, engraçadinho e, então, jogamos comida fora do prato, fugimos cambaleantes para não tomar o banho que naturalmente queremos e, principalmente, dizemos ter medo do escuro só para ficar junto à mamãe e atrapalhar a vida daquele canalha que dorme com ela.
            Assim começamos a mentir deliberadamente. E como tudo na vida tem um fim...
            A primeira vez que descobrimos que não somos mais bonitinhos, engraçadinhos, é quando recebemos aquele olhar de reprovação, só porque jogamos uma colher de comida na cara do cachorro que não tinha nada que estar perto da mesa na hora do almoço. Crescemos e agora aquele olhar meigo, risonho e doce nos cobre de humilhação e vergonha. E eu juro que foi sem querer.
            Um pouco mais velhos, descobrimos que aqueles braços macios têm força e que força! Escondemos as notas da escola para fugir dos braços que espantam a preguiça do corpo e nos ensinam, cruel ensinamento, que o estudo é que nos fará alguém na vida. Não é por medo, não, mas eu juro que ainda não entregaram as notas.
            Finalmente, a duras penas, arrumamos uma namorada, aquela que irá nos devolver o carinho da infância e que tudo o que fizermos será, para ela, bonitinho, engraçadinho, como era com a mamãe. Exceto o sexo, nossa maior descoberta. E só então nos damos conta que os gemidos que ouvíamos de madrugada no quarto ao lado, não era o canalha batendo na mamãe. Era muito pior...
            Porém, assim como papai, o canalha, eu juro que a camisinha estourou.
            Um ano trabalhando no escritório de um velho ranzinza, torturador cruel, que sempre nos repreende por chegar atrasado. A culpa não é nossa não, é do ônibus, eufemismo para a mãe-esposa que não nos deixa pregar o olho reclamando que falta isso, falta aquilo. Sentimos vergonha porque as mulheres que trabalham conosco sempre chegam no horário, sempre sorridentes. É que elas não são homens, graças a Deus, são mulheres apenas e nós, pobres vítimas de uma sociedade patriarcal, mal conseguimos abrir um olho.
            - Sei que o senhor não vai acreditar, mas o ônibus teve um pneu furado quando eu vinha para o trabalho. Eu juro!
            Depois já cansados da luta diária, sonhamos em mandar o velho viajar, ou se preferirem, para a p... Mas, temos medo. Ficar sem emprego nos dias de hoje é quase um suicídio.
            - Sei que o senhor não vai acreditar, mas o ônibus teve um pneu furado quando eu vinha para o trabalho. Eu juro!
            Com o passar dos anos, melhoramos financeiramente e apenas financeiramente. O patrão é o mesmo e sabe-se-lá-por-quê nos deu promoções ao longo da carreira, afinal vinte anos não são vinte dias. Mas, com mil diabos, ele ainda não aceita minhas desculpas:
            - Sei que o senhor não vai acreditar, mas o pneu do carro furou quando eu vinha para o trabalho. Eu juro!
            Vinte anos não são vinte dias e muito menos trinta anos são trinta dias. Escorregamos definitivamente no caos. Casa, mulher, filhos, cachorro, o chato do sogro como patrão, trinta anos e o velho não morre nunca. Basta! Vamos a forra!
            Happy hour, cinco ou seis chopps depois, vem à nossa mesa uma mãe-mulher ou uma mulher-mãe como queiram, para nos consolar trinta anos de solidão, trinta anos em que nada do que fazemos é bonitinho, engraçadinho. Relutantes a convidamos para sentar. Conversa vai, conversa vem... Queremos por um fim em tudo. Basta!
-          Você é casado?
-          Não, esta aliança é o último elo que sobrou entre mim e meus filhos. Por isso
não a tiro.
-          Você ainda ama sua mulher, não?
-          Qual...
-          Pergunto isso, porque você parece assim... Tão triste...
-          Triste por estar sozinho há tanto tempo...
Seis ou sete chopps depois: Motel. E o que fazemos? Nada.
            Trinta anos não são trinta dias.
-          Isso nunca me aconteceu antes...
Trinta anos!
-          Se você me der um tempo, eu consigo...
Trinta anos!
- Vamos marcar outro dia, eu te ligo...
            Chegamos em casa às quatro ou quatro e meia da manhã...
-          Onde você estava?
-          Você não vai acreditar, mas o pneu furou e...
-          Mentiroso, safado, esta desculpa é velha.
-          Desculpe, querida (trinta anos não são trinta dias), estiquei com os amigos e não
me dei conta das horas e...
            - Você não tem amigos, cachorro...
            É verdade, tanto tempo sozinho, colegas são poucos e nenhum é de confiança, infelizmente. Trinta anos. E a mulher continua:
-          Diga a verdade, canalha, você estava com alguma prostituta. Você não presta.
Não pensou em mim, não pensou nos filhos... vo... você... você não me ama mais...
            Pingos nos is, saldos na balança. Resolvemos resgatar um fio de honestidade e honradez que se esconde em algum lugar, mas onde?
-          Perdoe-me, meu amor, perdi o controle. Sai para desafogar, me envolvi com
uma mulher... Fomos ao motel, mas eu juro, não fizemos nada...
-          Não fizeram nada?... No motel?... Não fizeram nada?...
-          Tá bem, fiz tudo, tudo ouviu... Estou cansado e quero dormir. Boa noite!
No outro dia, a vida continua... Café, torrada, filhos na escola e a mulher... Bem, a

mulher, esposa e mãe, assim como todas as mães, acaba nos perdoando mas... Do que mesmo?